segunda-feira, 28 de março de 2016

O sorriso dos canalhas



O SORRISO DOS CANALHAS

Eles permanecem aí, sorrindo – em reuniões regadas a bom uísque, sorrindo – diante das câmeras de televisão, sorrindo – de terno e gravata, sorrindo. Parecem felizes, diriam uns, estão de bem com a vida, pensariam outros, têm belas lembranças, concluiriam então. Sem dúvida! Cada vez que um deles se olha no espelho, preparando-se para aparecer em público, uma súbita alegria o invade. É um homem impune, e sempre que lembra disso ele sorri. Sorri diante de nosso esquecimento, sorri diante da perplexidade daqueles poucos que ainda se recordam, que ainda sofrem. Sorri por todos os sorrisos que roubou.
Sim, eles permanecem aí e celebram nossa indiferença, nossa curta memória. Mas ainda é cedo demais para esquecer, e o sorriso deles é a prova disso. Enquanto vamos levando a nossa vidinha de todos os dias, preocupados com o preço da gasolina e a violência das grandes cidades, eles andam pelas ruas, vão ao cinema, frequentam restaurantes, assombram suas vítimas. Que imensa ilusão pensarmos que estamos em segurança enquanto eles sorriem. Se ainda não podemos fazer alguma coisa, temos ao menos a obrigação de não esquecer.

(Trecho do livro O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro, de Regina Dalcastagnè, publicado em 1996).

domingo, 6 de março de 2016

Canção para ‘Paulo’

Alex Polari, condenado a prisão durante a ditadura militar, só foi libertado aos 29 anos, em 1980, após a anistia. Dois anos antes, em 1978, publicou um livro, Inventário de Cicatrizes, com as poesias que escreveu no cárcere. São versos duros, tristes, revoltantes, sobre a tortura nos porões da ditadura militar – um dos poemas é dedicado a Stuart Angel, torturado e morto pelos militares.

Stuart Angel

Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)


Eles costuraram tua boca
com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gases,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.

Um vento gelado soprava lá fora
e os gemidos tinham a cadência
dos passos dos sentinelas no pátio.
Nele, os sentimentos não tinham eco
nele, as baionetas eram de aço
nele, os sentimentos e as baionetas
se calaram.

Um sentido totalmente diferente de existir
se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.

Eles queimaram nossa carne com os fios
e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.

Então houve o percurso sem volta
houve a chuva que não molhou
a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.

Entregue a perplexidades como estas,
meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.