terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ainda estou aqui - Marcelo Rubens Paiva


Já faz 2 semanas que terminei de ler “Ainda estou aqui” e não consigo escrever uma resenha decente. Falando bem superficialmente (afinal, preciso começar por algum lugar), em seu novo livro Marcelo Rubens Paiva mescla memórias particulares com acontecimentos da história pública recente do país em uma narrativa que resgata lembranças de sua infância feliz, tenta entender sua juventude conturbada e procura montar o quebra-cabeça do passado de sua família em busca de pistas que lhe ajudem a trilhar uma nova fase de sua vida.

Ler esse livro foi como sentar ao lado daquele amigo que é bom contador de histórias. Falando de um jeito franco e sem afetação, Marcelo revive os dias de diversão no interior com os primos, os bailinhos adolescentes, as dificuldades com as garotas e, claro, o período nebuloso que envolveu o desaparecimento de seu pai durante a ditadura, bem como os anos difíceis que vieram depois, as informações desencontradas, a vida em suspenso enquanto a morte não era oficialmente decretada. Ele fala, sobretudo, de sua mãe, ou melhor, das várias faces de sua mãe.

Eunice Paiva nunca se encaixou no estereótipo de mãe ideal – não era do tipo afetuoso (não era daquelas que ficam beijando, abraçando, apertando o tempo todo) e não tolerava manhas – tampouco se enquadrava na descrição de uma italiana típica (vivia de regime, não falava alto nem gesticulava demais). Nas férias, preferia ficar trancada no quarto, lendo, a brincar com os filhos e outras crianças da família na piscina. Era uma mulher prática, que ensinava (e cobrava) as regras da boa educação, mas que dava autonomia aos filhos para que assumissem obrigações e tomassem suas próprias decisões (o autor guarda uma mágoa infantil por sua mãe jamais ter ido a uma reunião de pais e mestres de seu colégio – o que teria feito qualquer criança comemorar – mas ela não fazia isso por desinteresse: fazia porque confiava no que havia passado aos filhos, acreditava na capacidade deles).

No entanto, foi justamente essa praticidade, essa visão racional das coisas, que lhe permitiu tomar as rédeas da família e seguir vivendo com ordem e determinação após o desaparecimento do marido. Uma mulher que sempre fora uma esposa exemplar, do tipo que espera o cônjuge com o jantar recém-saído do forno, um visual impecável e um sorriso no rosto, então se via em uma situação nova: cinco filhos para cuidar, contas bancárias e bens bloqueados, um seguro de vida que não podia resgatar devido à impossibilidade de provar a morte do esposo. Com sua sensatez aliada ao senso de urgência, arregaçou as mangas e foi estudar, formou-se em direito, mergulhou no trabalho, envolveu-se com causas indígenas.

Uma mulher forte, sem dúvida. E é justamente por isso que o autor sofre ao vê-la sendo dominada pelo Alzheimer, uma doença degenerativa e incurável de origem incerta. Depois de uma vida de luta, aos 77 anos, a mãe é interditada judicialmente. Ela, que ajudara a cuidar da interdição de parentes e amigos tantas vezes, agora assumia para o lado passivo da história. Ela, que criara os filhos sozinha e cuidara intensamente de Marcelo quando ele sofreu o acidente que o deixou paraplégico, agora passava a ser responsabilidade dele, passava a ser cuidada por ele. A inversão dos papéis.

Gostei muito das partes em que o autor fala da doença da mãe, de como a deterioração física e mental dela afetou a todos ao redor, dessa mudança na relação entre a mãe e ele e de como seu próprio filho entrou na equação e conseguiu se comunicar com a avó mesmo sem palavras.

Outra característica do livro que me agradou muito foi que Marcelo consegue escrever de um jeito leve, mesmo quando aborda assuntos pesados, como o Alzheimer e a ditadura. Aliás, achei bem bacana um trecho em que ele fala dos militares sem generalizar, dizendo que sabia que o inimigo era um regime, não uma carreira, e quando enfatiza a busca por justiça, mas sem sentimentos como ódio ou vingança.

“Naquela tarde que pegamos o atestado de óbito, em 1996, vi minha mãe então chorar como nunca fizera antes. Era um urro. Não tinha lágrimas. Como se um monstro invisível saísse de sua boca: uma alma. Um urro grave, longo, ininterrupto. Como se há muito ela quisesse expelir. Pela primeira vez, me deixou falar, sem me interromper. Pela primeira vez, na minha frente, chorou tudo o que havia segurado, tudo o que reprimiu, tudo o que quis. Foi um choro de vinte e cinco anos em minutos. O rompimento de uma represa.”

Foi ótimo reencontrar um velho amigo depois de muitos anos e conhecer novos detalhes de uma história que eu já havia escutado anteriormente. Recomendo muito!

Resenha originalmente publicada no Resumo da Ópera e cedida para o projeto Lendo a Ditadura

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Feliz Ano Velho



Feliz Ano Velho é um romance testemunho, narrado em primeira pessoa por Marcelo, narrador-personagem dessa história. É um romance sobre o passado, pois relata sua juventude e como tudo mudou a partir do momento em que ele sofre um acidente ao pular de um lago raso e fraturar a coluna na queda. Por conta do acidente, Marcelo fica paralisado do pescoço para baixo. Por meio desse testemunho de tudo o que passou no hospital durante os meses em que ficou internado, tomamos conhecimento de seu sofrimento e de sua luta para recuperar pelo menos uma parte dos movimentos.

Marcelo passa por uma cirurgia e, após alguns meses no hospital em tratamento, consegue recuperar o movimento dos braços, mas permanece paraplégico. Durante o período em que está no hospital fazendo fisioterapia e angustiado diante da possibilidade de nunca mais ter os movimentos e a sua vida de volta, ele relembra a sua infância, quando o pai, o deputado Rubens Paiva, é sequestrado e morto pelos militares na ditadura militar brasileira, assim como outros momentos que marcaram sua juventude: o convívio com os amigos na época da universidade, sua relação com a música e com as mulheres. Contudo, a ditadura militar não é o tema central desse romance, uma vez que o tema só aparece em determinado momento da narrativa quando Marcelo relembra o dia em que o pai foi levado pelos militares, descrevendo o medo que sentiu e o sofrimento de sua mãe, que continuou por muito tempo a procurá-lo. Ainda assim, é um testemunho importante do que de fato ocorreu com tantas pessoas durante a ditadura militar em nosso país e as marcas que ficaram para sempre nessas famílias.

Mas Feliz Ano Velho fala de Marcelo. Do que ele sentia, do que ele se lembrava enquanto estava no hospital, dos muitos amigos que estiveram ao seu lado durante esse período de recuperação, enfim, é um exemplo dessa escrita de si. O livro é um testemunho interessante e importante em nossa literatura por trazer uma realidade pouco discutida pela maioria das obras que é a questão da deficiência. Para comprovar isso basta tentar lembrar: quantos personagens com alguma deficiência física você lembra de já ter lido?

Entre lembranças de sua juventude na universidade, dos seus relacionamentos com as garotas, e outras lembranças de sua vida às quais ele recorre como que para fugir da situação de paralisa em que se encontrava no hospital e que exigia muita paciência, aos poucos, Marcelo toma consciência de que não voltará ao que era no passado e que é preciso seguir em frente. O processo de negação inicial dá lugar a um Marcelo consciente de que está paraplégico e que terá que reconquistar sua independência em cada pequena ação do dia a dia, sem deixar de notar as dificuldades e o preconceito que as pessoas com alguma deficiência física enfrentam nas cidades brasileiras, onde a acessibilidade ainda hoje, 30 anos depois da publicação do romance, não é ideal. É nesse momento que o foco do romance parece mudar um pouco, demonstrando o amadurecimento do personagem ao descobrir sua força para lidar com essa nova situação, reencontrando na escrita uma forma de tratar do assunto, compartilhar experiências e também de trabalho. Nesse sentido, o livro traz informações importantes sobre a dificuldade de adaptação que pessoas como Marcelo tiverem que enfrentar, mas mostrando, de forma positiva, que é possível viver bem e superar as dificuldades.

*Resenha publicada originalmente no blog Pipa não sabe voar.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Quarup, Antônio Callado


Título: Quarup
Escritor: Antônio Callado (Brasil)
Ano de Publicação: 1967
Editora: José Olympio
Páginas: 574
Gênero: Drama, Romance, História
Nota: ♥ ♥ ♥ 


Essa é uma obra de fôlego, contendo quase 600 páginas que acompanham a história do Brasil desde 1954, ano em que Getúlio Vargas morre, até pouco mais de 1964, quando a ditadura militar tem início. Ler essa obra tão grandiosa é voltar os olhos para o passado, buscando compreender o futuro do Brasil, o que se encaixa como um luva no nosso atual momento histórico.

Quarup é o livro mais famoso de Antônio Callado. É uma obra politicamente engajada, que discute a identidade do Brasil enquanto país, enquanto nação. Seu protagonista, o padre Nando, é uma metáfora para todo o povo brasileiro, em sua constante busca por objetivos, por definições e por valores. Em muitos aspectos, por suas grandes ambições, Quarup me lembrou Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Quarup, contudo, é uma obra mais voltada para a realidade política do Brasil, enquanto Viva o Povo Brasileiro foca mais nas questões sociais e raciais.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Pessach: A Travessia - Carlos Heitor Cony


Em “Pessach: A Travessia” acompanhamos o escritor Paulo Simões em uma série de compromissos que ele deveria cumprir no dia de seu 40º aniversário: ir ao escritório para falar com seu editor, visitar a filha no internato, passar pela casa dos pais para o almoço protocolar, aproveitar para dar um pulo na casa da ex-esposa, receber um colega que dizia ter um assunto urgente para tratar. A cada parada, uma surpresa. O dia que parecia ser apenas mais um igual a tantos outros se transforma no início de uma grande mudança.

Paulo é um cara comum, que se define como simples, neutro, sem nenhum traço que o faça se destacar, sem amigos, dívidas ou amores. No dia em que completa 40 anos ele se sente velho, cansado e inútil. Tudo o que quer é ter um dia agradável e sem complicações, mas isso é exatamente o oposto do que acontece. No escritório, o editor lhe pede um conto com um tema inusitado e fútil; no internato a filha se mostra animada ao falar dos livros comunistas proibidos que lê às escondidas com as amigas e o chama de alienado; na casa dos pais, a mãe sofre de dores e aguarda o médico enquanto o pai diz que quer se assumir judeu depois de uma vida toda de negação – e ainda esquecem de seu aniversário; a ex-esposa lhe apresenta ao novo marido beberrão e ao filho recém-nascido que ele nem sabia da existência; por fim, o antigo colega o convoca para a luta contra a ditadura. Novidade demais para absorver de uma vez.

Sendo um cara declaradamente sem posicionamentos, Paulo Simões (cujo sobrenome real e judeu é Simon e que aprendera a renegar sua origem com o pai) ri diante da proposta do colega Sílvio. Envolver-se em política, lutar contra a ditadura, pegar em armas? Não, nem pensar! Ele já demonstrava seu apoio assinando manifestos. Era o máximo que podia fazer, obrigado. E, com licença, mas tenho um conto encomendado para escrever e vou viajar para poder me dedicar totalmente ao trabalho. Quem sabe começar a pensar em um novo romance. Adeus e boa sorte!

Só que as coisas não saem bem como Paulo havia planejado e, ao dar uma simples carona a Vera, a moça que fora com Sílvio ao seu apartamento, ele se vê envolvido com um grupo que se organizava para derrubar a ditadura. Acaba ficando preso em um sítio que servia de base para um braço da organização (não que fosse refém; apenas não podia ir embora), é apresentado ao funcionamento do local, recebe uma cabana só para si, para que pudesse escrever à vontade, conhece melhor alguns participantes do movimento. Embora ninguém o obrigasse a participar, Paulo fazia questão de enfatizar sempre que tinha oportunidade que não queria participar de nada, que só estava ali porque era obrigado, que assim que pudesse voltaria para casa e retomaria sua vida pacata, ordeira e sem emoção.

No entanto, sem se dar conta, Paulo acaba envolvido na luta; primeiro só se oferecendo para escrever sobre os ideais do grupo antiditadura; depois realmente partindo para a ação e pegando em armas. Ainda que relutasse em participar e agisse contra sua natureza, quando, a certa altura da história, ele é liberado e tem a chance de tomar um avião rumo ao seu aconchegante e seguro lar, ele já está modificado demais para não se importar com tudo o que vê ao seu redor.

E é então que o título do livro passa a fazer sentido: “pessach” significa “travessia, passagem”, e é a festa judaica que celebra o êxodo do povo hebreu que preferiu a fome e a morte no deserto a continuar escravo, fugindo pelo Mar Vermelho. A princípio, era apenas um esboço de romance que Paulo iniciara anos antes e que pretendia desenvolver nesse período de isolamento – algo que retomava sua origem judia e que explicava de certa forma a trajetória de seu pai. Depois o termo se amplia ainda mais, e acaba representando sua própria trajetória, de alienado e descompromissado a consciente e engajado. Como seus ancestrais, ele também preferiu abrir mão de uma vida cômoda para encarar as dificuldades da luta pela liberdade.

A primeira parte do livro é bem comum e sem ação, refletindo perfeitamente Paulo e sua existência entediante e sem propósito. A partir do momento em que dá carona a Vera, ele perde completamente o controle de sua vida, se desespera, fica irritado, tenta a todo custo voltar para o que conhece e está acostumado. Como não pode escolher, é arrastado para um mundo bem diferente do seu, mas o qual acaba abraçando, deixando sua individualidade de lado pelo bem do coletivo. Nem preciso dizer que essa segunda parte é bem mais animada e faz a leitura fluir mais rápido, tornando sua contraposição com o início da história ainda mais relevante.

“Não gosto do governo atual, mas jamais gostei de governo algum. Politicamente, sou anarquista comodista, e, por isso, inofensivo e covarde. Não estou disposto a dar ou receber tiro por causa da liberdade, da democracia, do socialismo, do nacionalismo, do povo, das criancinhas do nordeste que morrem de fome. O fato político não me preocupa, é tudo."

Um sujeito apático que encontra uma motivação para sua vida. Diante de tantos retrocessos que temos visto ultimamente, faz pensar: até que ponto somos como o protagonista de "Pessach"?

Resenha originalmente publicada no Resumo da Ópera e cedida para o projeto Lendo a Ditadura